O caso inédito da brasileira que carrega DNA do irmão gêmeo

O corpo humano é um complexo sistema biológico, e a genética desempenha um papel fundamental na determinação das características individuais. Em casos raros, a composição genética de um indivíduo pode apresentar particularidades que desafiam a compreensão comum, como a presença de diferentes perfis de DNA em distintas partes do corpo. Um exemplo notável é o de uma brasileira que, embora possua cromossomos XX em suas células somáticas gerais, apresenta cromossomos XY em suas células sanguíneas, uma condição que aponta para a absorção de um irmão gêmeo durante o desenvolvimento embrionário.

Compreendendo o Quimerismo Humano

A condição observada, onde um indivíduo possui duas ou mais populações de células geneticamente distintas que se originaram de diferentes zigotos, é conhecida como quimerismo. O termo deriva da Quimera da mitologia grega, uma criatura composta por partes de diferentes animais. No contexto biológico, o quimerismo humano é um fenômeno raro, mas bem documentado, que pode surgir de diversas maneiras.

Uma das formas mais intrigantes de quimerismo é o quimerismo tetragamético, que ocorre quando dois óvulos fertilizados separadamente se fundem no início do desenvolvimento embrionário, resultando em um único organismo. Esse indivíduo, então, carrega células com dois conjuntos distintos de DNA, cada um derivado de um zigoto original. As células de cada zigoto podem se desenvolver em diferentes tecidos ou órgãos, ou se misturar por todo o corpo.

Outra forma comum é o microquimerismo, que envolve a presença de um pequeno número de células geneticamente distintas de outro indivíduo. Isso é frequentemente observado em mulheres grávidas, que podem carregar células de seus filhos (microquimerismo fetal-materno), ou em indivíduos que receberam transplantes de órgãos ou transfusões de sangue. No entanto, o caso em questão difere do microquimerismo pela extensão e pela origem das linhagens celulares.

A Síndrome do Gêmeo Desaparecido

O cenário mais provável para a condição da brasileira é a síndrome do gêmeo desaparecido, também conhecida como gêmeo evanescente. Este fenômeno ocorre em gestações múltiplas, onde um dos embriões ou fetos morre no útero e é parcial ou completamente reabsorvido pelo outro gêmeo, pela mãe ou pela placenta. A incidência da síndrome do gêmeo desaparecido é mais comum do que se imagina, especialmente em gestações iniciais detectadas por ultrassonografia.

Quando a reabsorção ocorre muito cedo no desenvolvimento, antes da formação completa dos órgãos, as células do gêmeo reabsorvido podem ser incorporadas ao corpo do gêmeo sobrevivente. Se o gêmeo reabsorvido possuía um sexo genético diferente (por exemplo, XY) do gêmeo sobrevivente (XX), o resultado pode ser um indivíduo com duas linhagens celulares distintas: uma predominante, correspondente ao seu próprio sexo genético, e outra minoritária, com o perfil genético do gêmeo desaparecido.

No caso de cromossomos XX em células somáticas gerais e XY em células sanguíneas, isso sugere que o gêmeo sobrevivente era geneticamente feminino (XX) e absorveu um gêmeo masculino (XY). As células sanguíneas, que têm uma alta taxa de renovação e se originam de células-tronco hematopoéticas, podem ser um local onde a linhagem celular do gêmeo desaparecido se estabelece e persiste.

A Base Genética: Cromossomos XX e XY

A determinação do sexo genético em humanos é primariamente definida pelos cromossomos sexuais. Indivíduos com dois cromossomos X (XX) são geneticamente femininos, enquanto aqueles com um cromossomo X e um cromossomo Y (XY) são geneticamente masculinos. Esses cromossomos contêm genes que direcionam o desenvolvimento das gônadas (ovários ou testículos) e, consequentemente, as características sexuais secundárias.

No quimerismo resultante da síndrome do gêmeo desaparecido, as células do gêmeo reabsorvido, com seu próprio conjunto de cromossomos sexuais, podem se integrar aos tecidos do gêmeo sobrevivente. A persistência dessas células em diferentes tecidos depende de vários fatores, incluindo o estágio de desenvolvimento em que a fusão ou reabsorção ocorreu e a capacidade das células do gêmeo reabsorvido de proliferar e se diferenciar no novo ambiente.

A presença de cromossomos XY em células sanguíneas de uma pessoa com cromossomos XX em outras células é um indicativo claro de que duas populações celulares com origens genéticas distintas coexistem. As células sanguíneas são particularmente relevantes porque são facilmente acessíveis para testes e representam uma linhagem celular que se origina de células-tronco na medula óssea, que podem ter sido colonizadas por células do gêmeo desaparecido.

Detecção e Diagnóstico do Quimerismo

O quimerismo é frequentemente descoberto incidentalmente, muitas vezes durante investigações médicas por outras razões, como testes de compatibilidade para transplantes, exames de paternidade ou investigações de anomalias genéticas. A detecção envolve técnicas de análise genética que podem identificar a presença de múltiplas linhagens celulares com perfis de DNA distintos.

Métodos comuns incluem:

  • Cariotipagem: Análise dos cromossomos para identificar a presença de diferentes conjuntos (por exemplo, XX e XY) em amostras de diferentes tecidos.
  • Análise de Microssatélites (STRs): Comparação de regiões repetitivas curtas de DNA que variam entre indivíduos. A presença de alelos de dois indivíduos distintos em uma única amostra pode indicar quimerismo.
  • Sequenciamento de DNA: Técnicas avançadas de sequenciamento podem identificar variações genéticas específicas que distinguem as duas linhagens celulares.
  • FISH (Hibridização Fluorescente In Situ): Uma técnica citogenética que usa sondas fluorescentes para se ligar a sequências específicas de DNA, permitindo a visualização de cromossomos ou genes específicos em células. Pode ser usada para identificar células XX e XY em uma mesma amostra.

A confirmação do quimerismo exige a análise de amostras de diferentes tecidos, pois a distribuição das linhagens celulares pode variar. Por exemplo, uma pessoa pode ter células XY no sangue, mas apenas células XX na pele ou em órgãos internos, ou vice-versa, dependendo de como as células do gêmeo desaparecido foram incorporadas e distribuídas durante o desenvolvimento.

Implicações Clínicas e Científicas

Na maioria dos casos de quimerismo, os indivíduos são saudáveis e não apresentam sintomas clínicos significativos relacionados à condição. A descoberta pode ser uma surpresa, mas raramente leva a problemas de saúde diretos. No entanto, em algumas situações, o quimerismo pode ter implicações.

Por exemplo, em casos de quimerismo tetragamético, pode haver ambiguidade genital ou outras anomalias de desenvolvimento, dependendo da proporção e distribuição das células XX e XY nos tecidos gonadais. No caso de quimerismo por gêmeo desaparecido, como o da brasileira, onde a pessoa se desenvolveu como uma mulher (XX) e as células XY estão restritas ao sangue, as implicações clínicas diretas são geralmente mínimas ou inexistentes.

A principal implicação prática pode surgir em contextos como testes de paternidade ou maternidade, onde o perfil genético de uma pessoa pode não ser consistente em todas as amostras de tecido, levando a resultados inesperados. Da mesma forma, em transplantes de órgãos ou medula óssea, a presença de duas linhagens genéticas pode complicar a compatibilidade.

Do ponto de vista científico, casos de quimerismo são de grande interesse para a pesquisa em genética, biologia do desenvolvimento e medicina reprodutiva. Eles fornecem insights valiosos sobre:

  • Plasticidade Celular: Como células de diferentes origens genéticas podem coexistir e funcionar harmoniosamente dentro de um único organismo.
  • Desenvolvimento Embrionário: Os mecanismos de fusão e reabsorção de embriões e a forma como as linhagens celulares se estabelecem em diferentes tecidos.
  • Tolerância Imunológica: Como o sistema imunológico de um quimera tolera células geneticamente diferentes, um fenômeno com implicações para transplantes e doenças autoimunes.
  • Determinação do Sexo: A complexidade da determinação do sexo e como a presença de células XY em um corpo XX (ou vice-versa) pode ou não afetar o fenótipo sexual.

Raridade e a Contribuição para o Conhecimento

Embora a síndrome do gêmeo desaparecido seja relativamente comum em gestações iniciais, o quimerismo resultante, onde o gêmeo sobrevivente incorpora uma quantidade detectável de células do gêmeo reabsorvido de forma que afete testes genéticos, é considerado raro. Casos como o da brasileira são notáveis precisamente por sua raridade e pela clareza com que demonstram o fenômeno.

Cada novo caso documentado de quimerismo contribui para o corpo de conhecimento médico e científico. Eles ajudam a refinar nossa compreensão sobre a variabilidade genética humana, os processos complexos do desenvolvimento pré-natal e as diversas maneiras pelas quais a biologia pode se manifestar. A capacidade de identificar e estudar essas condições avançou significativamente com o progresso das tecnologias de sequenciamento de DNA e análise genética.

A existência de indivíduos com múltiplas linhagens genéticas desafia a noção simplificada de que cada pessoa possui um único e homogêneo perfil de DNA. Em vez disso, revela a intrincada tapeçaria da vida e a capacidade do corpo de integrar e funcionar com uma diversidade genética interna, um testemunho da adaptabilidade biológica.

A pesquisa contínua sobre o quimerismo e condições genéticas raras é essencial para aprimorar o diagnóstico, o aconselhamento genético e, potencialmente, desenvolver novas abordagens terapêuticas para condições relacionadas. Tais descobertas reforçam a importância da investigação científica para desvendar os mistérios do corpo humano e expandir os limites do que se sabe sobre a genética e a saúde.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5y35vv39gxo?at_medium=RSS&at_campaign=rss

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