Enviados 'como escravos' à Rússia: os relato de imigrantes da Coreia do Norte à BBC

A presença de trabalhadores da Coreia do Norte em território russo tem sido objeto de crescente atenção e preocupação internacional. Relatos indicam que dezenas de milhares de cidadãos norte-coreanos podem estar sendo enviados para a Rússia, um movimento que coincide com a intensificação das necessidades de mão de obra no país, exacerbadas pelo conflito na Ucrânia. As condições sob as quais esses indivíduos operam levantam sérias questões sobre direitos humanos e conformidade com as sanções internacionais. Este fluxo de trabalhadores representa uma complexa intersecção de geopolítica, economia e direitos laborais, com implicações significativas para a Coreia do Norte, a Rússia e a comunidade global.

O Contexto Histórico da Exportação de Mão de Obra Norte-Coreana

A Coreia do Norte possui uma longa trajetória de envio de seus cidadãos para trabalhar no exterior. Este programa, gerenciado pelo Estado, serve como uma fonte crucial de divisas estrangeiras para o regime de Pyongyang. Desde a década de 1960, trabalhadores norte-coreanos têm sido enviados para diversos países, incluindo a antiga União Soviética, nações do Leste Europeu, China e, mais tarde, para o Oriente Médio e algumas partes da África. A principal motivação para o governo norte-coreano é a obtenção de moeda forte, essencial para financiar programas estatais, incluindo o desenvolvimento militar e a manutenção da elite.

Os trabalhadores são tipicamente recrutados por agências estatais e submetidos a um rigoroso processo de seleção. Eles são frequentemente informados de que estão contribuindo para a prosperidade de sua nação e de suas famílias. No entanto, inúmeros relatos de desertores e organizações de direitos humanos descrevem condições de trabalho que se assemelham a trabalho forçado. Estas condições incluem a confiscação de uma parcela significativa, por vezes até 90%, dos salários pelos empregadores norte-coreanos ou diretamente pelo Estado, longas jornadas de trabalho, restrições severas à liberdade de movimento e comunicação, e vigilância constante por parte de supervisores norte-coreanos.

A China e a Rússia têm sido os principais destinos para a mão de obra norte-coreana nas últimas décadas. A proximidade geográfica e os laços políticos históricos facilitaram esses arranjos. A natureza opaca do sistema de trabalho norte-coreano torna difícil obter dados precisos sobre o número exato de trabalhadores e os valores gerados, mas estimativas sugerem que milhões de dólares são anualmente remetidos para Pyongyang através deste esquema.

A Demanda de Mão de Obra na Rússia e o Impacto da Guerra

A Rússia enfrenta desafios demográficos e de mão de obra há anos. A diminuição da população em idade ativa e a baixa taxa de natalidade já criavam uma demanda por trabalhadores estrangeiros, tradicionalmente preenchida por migrantes de países da Ásia Central. No entanto, o conflito na Ucrânia exacerbou drasticamente essa situação.

A mobilização militar de centenas de milhares de homens para o front, juntamente com a emigração de muitos cidadãos russos que buscam evitar o serviço militar ou as consequências econômicas da guerra, criou uma escassez aguda de mão de obra em diversos setores. Indústrias como a construção civil, manufatura, agricultura e até mesmo serviços essenciais têm relatado dificuldades em encontrar pessoal qualificado e não qualificado. A reconstrução de áreas danificadas pela guerra, tanto na Rússia quanto nos territórios ucranianos ocupados, também exige um grande contingente de trabalhadores.

Neste cenário, a mão de obra norte-coreana pode ser vista como uma solução atraente para Moscou. Os trabalhadores norte-coreanos são conhecidos por sua disciplina e pela capacidade de trabalhar em condições difíceis, muitas vezes por salários significativamente mais baixos do que os trabalhadores locais ou de outras origens. Além disso, a natureza controlada do sistema de trabalho norte-coreano oferece à Rússia uma força de trabalho que é menos propensa a deserções ou a reivindicações de direitos laborais, em comparação com outras fontes de migração. A crescente aproximação política entre Moscou e Pyongyang, impulsionada por interesses mútuos e pela oposição a sanções ocidentais, também facilita tais acordos.

Alegações de Condições de Trabalho Coercitivas

Os relatos sobre as condições de trabalho dos norte-coreanos na Rússia e em outros países têm gerado preocupação internacional. A BBC, entre outras organizações de mídia e direitos humanos, tem documentado testemunhos que descrevem um ambiente de trabalho altamente restritivo e explorador. O termo “escravos” tem sido utilizado por alguns para descrever a situação, refletindo a percepção de que os trabalhadores têm pouca ou nenhuma autonomia sobre suas vidas e seus ganhos.

As alegações incluem a retenção de passaportes, o que impede os trabalhadores de deixar seus locais de trabalho ou o país. A maior parte de seus salários é supostamente confiscada pelo governo norte-coreano, deixando-lhes apenas uma pequena quantia para despesas pessoais, ou em alguns casos, nada. Esta prática é justificada pelo regime como uma “taxa de lealdade” ou contribuição para o Estado. Os trabalhadores são frequentemente alojados em dormitórios superlotados e monitorados de perto por supervisores norte-coreanos, que impõem regras estritas e punições por infrações. A comunicação com o mundo exterior é severamente limitada, e o acesso a telefones celulares ou à internet é frequentemente proibido.

A falta de acesso a mecanismos legais para reivindicar direitos ou buscar proteção é uma característica central desses relatos. Os trabalhadores temem represálias contra si mesmos ou suas famílias na Coreia do Norte se tentarem fugir ou denunciar as condições. A pressão psicológica e a ameaça de punição são elementos constantes, criando um ambiente de coerção que se alinha com as definições de trabalho forçado.

Sanções Internacionais e Violações

A exportação de mão de obra norte-coreana tem sido alvo de sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em 2017, em resposta aos programas de armas nucleares e mísseis balísticos de Pyongyang, o Conselho de Segurança aprovou as resoluções 2375 e 2397. Estas resoluções impuseram um prazo para que todos os Estados-membros repatriassem os trabalhadores norte-coreanos em seu território até o final de 2019, com o objetivo de cortar uma fonte vital de financiamento para o regime.

A justificativa para essas sanções é que os lucros gerados pela mão de obra no exterior são diretamente canalizados para o desenvolvimento de armas de destruição em massa, representando uma ameaça à paz e segurança internacionais. A implementação dessas sanções exigia que os países relatassem o número de trabalhadores repatriados e garantissem que não houvesse novos contratos de trabalho.

No entanto, relatórios subsequentes de painéis de especialistas da ONU e de organizações não governamentais indicaram que alguns países, incluindo a Rússia e a China, não cumpriram integralmente as resoluções. Alegações de que a Rússia continua a empregar trabalhadores norte-coreanos, e até mesmo a aumentar seu número, sugerem uma violação direta dessas sanções. A continuidade ou expansão do envio de trabalhadores norte-coreanos para a Rússia, especialmente no contexto atual de guerra e sanções ocidentais contra Moscou, pode ser interpretada como um desafio às normas internacionais e um enfraquecimento do regime de sanções.

A Perspectiva de Pyongyang e Moscou

Para o regime de Pyongyang, a exportação de mão de obra é uma estratégia econômica fundamental. Em um país com recursos limitados e isolado por sanções, a capacidade de gerar divisas estrangeiras é crucial para a sobrevivência e a manutenção do poder. Os trabalhadores são apresentados como “heróis” que contribuem para a nação, e o dinheiro que enviam é vital para a economia estatal e para a compra de bens de luxo para a elite. A Coreia do Norte nega as alegações de trabalho forçado, afirmando que seus cidadãos trabalham voluntariamente e recebem salários justos.

Do lado russo, a decisão de continuar ou expandir o emprego de trabalhadores norte-coreanos reflete uma combinação de necessidades econômicas e alinhamento geopolítico. A escassez de mão de obra é um problema real e premente para a economia russa, e os trabalhadores norte-coreanos oferecem uma solução prática. Além disso, a relação entre a Rússia e a Coreia do Norte tem se fortalecido nos últimos anos, especialmente após a invasão da Ucrânia. Ambos os países enfrentam sanções ocidentais e buscam parceiros que desafiem a ordem internacional liderada pelos EUA. A cooperação em áreas como a mão de obra pode ser vista como parte de uma estratégia mais ampla de fortalecimento de laços e de resistência à pressão externa.

Apesar das sanções da ONU, a Rússia tem mantido uma postura de cooperação com a Coreia do Norte em diversas frentes. A questão dos trabalhadores é um exemplo tangível dessa relação, onde as necessidades econômicas e os interesses geopolíticos parecem sobrepor-se às obrigações internacionais.

Implicações Humanitárias e Geopolíticas

As implicações da presença de trabalhadores norte-coreanos na Rússia são multifacetadas. Do ponto de vista humanitário, as alegações de trabalho forçado e a falta de direitos básicos para esses indivíduos representam uma grave violação dos direitos humanos fundamentais. A comunidade internacional, incluindo organizações de direitos humanos, tem expressado repetidamente preocupação com a exploração desses trabalhadores. A ausência de mecanismos eficazes para proteger esses indivíduos e a dificuldade de acesso a eles por observadores externos agravam a situação.

Geopoliticamente, o fluxo de trabalhadores norte-coreanos para a Rússia sublinha a crescente polarização global. A cooperação entre Pyongyang e Moscou, em desafio às sanções da ONU, sinaliza uma erosão da arquitetura de segurança internacional e um enfraquecimento da eficácia das sanções como ferramenta diplomática. Isso pode encorajar outros regimes a desafiar as normas internacionais, percebendo uma falta de consequências.

A situação também levanta questões sobre a responsabilidade das empresas e entidades russas que empregam esses trabalhadores. Embora a natureza do sistema norte-coreano dificulte a identificação de responsabilidades diretas, a participação em cadeias de suprimentos que utilizam trabalho forçado pode ter implicações éticas e legais. A comunidade internacional continua a monitorar a situação, com apelos para que a Rússia cumpra suas obrigações sob as resoluções do Conselho de Segurança da ONU e para que os direitos dos trabalhadores norte-coreanos sejam protegidos. A complexidade do cenário, envolvendo um regime isolado, um país em guerra e sanções internacionais, torna a resolução dessas questões um desafio contínuo.

A questão dos trabalhadores norte-coreanos na Rússia permanece um ponto de tensão e preocupação. Os relatos de condições de trabalho coercitivas, a necessidade de mão de obra russa e as implicações das sanções da ONU convergem para um cenário onde a dignidade humana e as normas internacionais são postas à prova. A situação reflete as dinâmicas complexas das relações internacionais contemporâneas e os desafios persistentes na proteção dos direitos humanos em contextos geopolíticos sensíveis.

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c620gkypd3po?at_medium=RSS&at_campaign=rss

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