A morte de um bebê de apenas um mês de idade na Gâmbia, supostamente em decorrência de uma mutilação genital feminina (MGF), reacendeu o debate sobre a persistência e a aplicação da lei contra esta prática no país e em toda a África. O incidente trágico trouxe à tona a urgência de fortalecer as medidas de proteção a meninas e mulheres, bem como a necessidade de combater as raízes culturais e sociais que ainda sustentam a MGF, apesar de sua proibição legal.
Na Gâmbia, a mutilação genital feminina é ilegal desde 2015. A legislação gambiana estabelece penalidades severas para os envolvidos na prática, incluindo multas e penas de prisão que podem variar, chegando à prisão perpétua nos casos em que a MGF resulta em morte. Este arcabouço legal reflete um compromisso formal do país em erradicar a prática, alinhando-se com esforços globais e regionais para proteger os direitos humanos e a saúde das mulheres e meninas.
Compreendendo a Mutilação Genital Feminina (MGF)
A Mutilação Genital Feminina (MGF) refere-se a todos os procedimentos que envolvem a alteração ou lesão dos órgãos genitais femininos por razões não médicas. Reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos das meninas e mulheres, a MGF não oferece benefícios para a saúde e, pelo contrário, causa danos físicos e psicológicos graves e duradouros. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a MGF em quatro tipos principais:
- Tipo I: Clitoridectomia – Remoção parcial ou total do clitóris e, em casos muito raros, apenas do prepúcio (dobra de pele que cobre o clitóris).
- Tipo II: Excisão – Remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios, com ou sem a excisão dos grandes lábios.
- Tipo III: Infibulação – Estreitamento da abertura vaginal através da criação de uma cobertura selante. O selo é formado cortando e reposicionando os pequenos lábios, ou os grandes lábios, com ou sem a remoção do clitóris.
- Tipo IV: Outros – Todos os outros procedimentos prejudiciais aos órgãos genitais femininos para fins não médicos, como picadas, perfurações, incisões, raspagens e cauterizações.
Estima-se que mais de 200 milhões de meninas e mulheres vivas hoje foram submetidas à MGF em 31 países da África, Oriente Médio e Ásia, onde a prática é mais prevalente. A maioria das meninas é submetida à MGF antes dos 15 anos de idade, muitas vezes entre a infância e os cinco anos, como no caso recente na Gâmbia.
Consequências Devastadoras para a Saúde
As consequências da MGF são profundas e abrangem uma vasta gama de problemas de saúde, tanto imediatos quanto a longo prazo. Imediatamente após o procedimento, as meninas podem sofrer de dor intensa, hemorragia grave, choque, infecções (incluindo tétano e HIV, se instrumentos não esterilizados forem usados), retenção urinária e até mesmo morte. A falta de condições higiênicas e a ausência de profissionais de saúde qualificados durante a prática aumentam exponencialmente esses riscos.
A longo prazo, as sobreviventes de MGF enfrentam uma série de complicações crônicas. Estas incluem infecções urinárias e vaginais recorrentes, problemas menstruais (dor, dificuldade de passagem do fluxo), formação de cistos e abcessos, cicatrizes queloides, dor crônica, dispareunia (dor durante a relação sexual) e infertilidade. As complicações obstétricas são particularmente graves para as mulheres que foram infibuladas, com aumento do risco de partos prolongados, hemorragias pós-parto, necessidade de cesariana, fístulas obstétricas e morte materna e neonatal.
Além dos impactos físicos, a MGF causa traumas psicológicos e emocionais significativos. Muitas sobreviventes relatam ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e problemas de autoestima. O trauma pode afetar suas vidas sexuais e reprodutivas, bem como seu bem-estar geral e sua capacidade de participar plenamente na sociedade.
A Legislação e Seus Desafios na Gâmbia
A Gâmbia, como muitos outros países africanos, tem feito progressos significativos na criação de um quadro legal para combater a MGF. A Lei de 2015, que criminaliza a prática, foi um marco importante. Ela não apenas proíbe a MGF, mas também pune aqueles que a realizam, os que a solicitam e os que a facilitam, incluindo os pais ou responsáveis que permitem que suas filhas sejam submetidas ao procedimento. As penas são severas, visando dissuadir a prática e proteger as vítimas.
No entanto, a existência de uma lei não garante sua aplicação efetiva. O caso recente na Gâmbia destaca os desafios persistentes na implementação e fiscalização da legislação. A MGF é uma prática profundamente enraizada em certas comunidades, muitas vezes realizada em segredo e justificada por tradições culturais, sociais e, por vezes, religiosas mal interpretadas. A resistência à lei pode vir de líderes comunitários, anciãos e até mesmo de membros da família que acreditam estar agindo no melhor interesse da criança ou da comunidade.
A falta de conscientização sobre os perigos da MGF e sobre a existência da lei, a dificuldade em coletar provas, a relutância das vítimas e suas famílias em denunciar, e a pressão social para manter a prática são alguns dos obstáculos à sua erradicação. Além disso, a impunidade de casos anteriores pode encorajar a continuidade da prática, minando a credibilidade da lei e do sistema judicial.
Fatores que Sustentam a Prática
A MGF é uma prática complexa, sustentada por uma variedade de fatores sociais, culturais e econômicos. Não está ligada a nenhuma religião específica, embora seja frequentemente justificada por interpretações errôneas de textos religiosos ou por crenças de que é um requisito religioso. As principais razões citadas para a sua continuidade incluem:
- Tradição e Coesão Social: Em muitas comunidades, a MGF é vista como um rito de passagem essencial para a feminilidade e a aceitação social. É um meio de garantir que as meninas se conformem às normas sociais e sejam consideradas aptas para o casamento.
- Crenças sobre Pureza e Higiene: Há a crença de que a MGF torna as meninas “limpas” e “puras”, controlando a sexualidade feminina e garantindo a virgindade antes do casamento.
- Pressão Social e Familiar: As famílias podem sentir-se pressionadas a submeter suas filhas à MGF para evitar o ostracismo social ou para garantir que suas filhas sejam consideradas elegíveis para o casamento.
- Controle da Sexualidade Feminina: A MGF é frequentemente associada à ideia de que ela reduz o desejo sexual feminino, garantindo a fidelidade e a castidade.
- Falta de Conscientização: Muitas pessoas, incluindo as que praticam a MGF, podem não estar cientes dos graves riscos à saúde e das violações dos direitos humanos que a prática acarreta.
Esses fatores criam um ciclo vicioso onde a prática é perpetuada através das gerações, tornando a intervenção legal e social ainda mais desafiadora.
Esforços Globais e Regionais para a Erradicação
A erradicação da MGF é uma prioridade para organizações internacionais, governos e a sociedade civil em todo o mundo. As Nações Unidas, através de agências como UNICEF, UNFPA e OMS, lideram campanhas de conscientização, fornecem apoio técnico aos países e promovem a pesquisa sobre a prática. A MGF está incluída nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especificamente no ODS 5 (Igualdade de Gênero), com a meta de eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas até 2030.
No nível regional, a União Africana e outras organizações regionais têm adotado protocolos e declarações que condenam a MGF e incentivam os estados membros a criminalizá-la e a implementar programas de erradicação. Muitos países africanos, além da Gâmbia, já possuem leis contra a MGF, incluindo Quênia, Uganda, Tanzânia, Nigéria, Egito e Etiópia, entre outros.
As estratégias de erradicação são multifacetadas e incluem:
- Legislação e Aplicação da Lei: Criação e fortalecimento de leis, treinamento de policiais e juízes, e garantia de que os infratores sejam responsabilizados.
- Educação e Conscientização: Campanhas de informação para educar comunidades sobre os perigos da MGF e os direitos das meninas, envolvendo líderes religiosos e comunitários.
- Empoderamento de Mulheres e Meninas: Promover a educação, o acesso à saúde e oportunidades econômicas para mulheres e meninas, fortalecendo sua autonomia e capacidade de resistir à prática.
- Engajamento Comunitário: Trabalhar com as comunidades para desenvolver alternativas à MGF, como ritos de passagem alternativos que celebram a transição para a idade adulta sem causar danos.
- Apoio a Sobreviventes: Fornecer serviços de saúde, apoio psicossocial e jurídico para as meninas e mulheres que foram submetidas à MGF.
O Debate Reacendido e o Caminho a Seguir
O trágico incidente na Gâmbia não é um caso isolado, mas um lembrete doloroso de que, apesar dos avanços legais e dos esforços de conscientização, a MGF continua a ser uma realidade para milhões de meninas. A morte do bebê reacendeu um debate crucial sobre a eficácia das leis existentes e a necessidade de uma abordagem mais robusta e abrangente para a erradicação.
Este debate não se limita à Gâmbia, mas ecoa em todo o continente africano e em comunidades da diáspora. Ele foca na tensão entre a preservação de tradições culturais e a proteção dos direitos humanos fundamentais, especialmente o direito à saúde, à integridade física e à vida. A discussão atual enfatiza a importância de ir além da mera proibição legal, exigindo uma mudança profunda nas normas sociais e nas mentalidades.
Para avançar, é imperativo fortalecer a aplicação da lei, garantindo que os infratores sejam processados e que a justiça seja feita para as vítimas. Isso requer o treinamento de profissionais da lei, a sensibilização de comunidades e a criação de mecanismos eficazes para denúncias e investigações. Além disso, é fundamental investir em programas de educação e empoderamento que desafiem as normas de gênero prejudiciais e promovam uma compreensão mais profunda dos direitos das crianças e das mulheres.
A colaboração entre governos, organizações internacionais, sociedade civil, líderes religiosos e comunitários é essencial. Somente através de um esforço conjunto e sustentado, que combine a força da lei com a educação e o engajamento comunitário, será possível proteger as futuras gerações da mutilação genital feminina e garantir que nenhuma outra vida seja perdida para esta prática prejudicial.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8x5yzjze8do?at_medium=RSS&at_campaign=rss
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