No início do século XX, um pequeno povoado rural na Hungria, conhecido como Nagyrév, tornou-se o cenário de uma série de eventos que desafiaram a compreensão e chocaram a sociedade da época. Durante um período que se estendeu por mais de uma década, dezenas de homens, e em alguns casos outros membros da família, morreram sob circunstâncias que, mais tarde, seriam reveladas como envenenamento deliberado. Este caso, que envolveu um grupo de mulheres da comunidade, é frequentemente citado como um dos mais notórios episódios de assassinato em massa por envenenamento na história moderna.
A aldeia de Nagyrév, situada na Grande Planície Húngara, era uma comunidade isolada, com uma população predominantemente agrícola. A vida no início do século XX era marcada por costumes sociais rígidos, expectativas de gênero bem definidas e poucas opções para aqueles que desejavam escapar de situações domésticas desfavoráveis. O divórcio era uma alternativa rara e socialmente estigmatizada, especialmente para as mulheres, que tinham pouca autonomia legal ou econômica.
O período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) trouxe mudanças significativas para Nagyrév. Muitos homens da aldeia foram convocados para o serviço militar, deixando suas esposas e famílias para gerenciar as propriedades e a vida cotidiana. Durante a ausência dos maridos, algumas mulheres estabeleceram novos relacionamentos com prisioneiros de guerra ou outros homens que permaneciam na retaguarda. Quando os soldados retornaram do front, muitos deles feridos, traumatizados ou com doenças crônicas, a dinâmica familiar e social da aldeia foi alterada. Os casamentos que já eram infelizes tornaram-se ainda mais tensos, e a perspectiva de cuidar de maridos doentes ou incapacitados, muitas vezes por longos anos, era desanimadora para algumas mulheres.
A Ascensão de Júlia Fazekas e o Método Silencioso
No centro desses acontecimentos estava Júlia Fazekas, uma parteira local. Embora não fosse natural de Nagyrév, ela se estabeleceu na aldeia e rapidamente ganhou uma posição de influência e confiança entre as mulheres da comunidade. Fazekas não apenas auxiliava nos partos, mas também se tornou uma conselheira para as mulheres que enfrentavam dificuldades em seus casamentos. Foi ela quem, segundo os registros, introduziu a ideia e facilitou o acesso ao arsênico como uma solução para os problemas conjugais.
O arsênico, um veneno inodoro e insípido quando administrado em pequenas doses, era relativamente fácil de obter na época. Era comumente usado como pesticida para ratos e insetos, ou como ingrediente em produtos de beleza e medicamentos populares. A substância podia ser extraída de papel mata-moscas, que era mergulhado em água e depois administrado às vítimas, geralmente misturado em alimentos ou bebidas. A lentidão dos sintomas iniciais do envenenamento por arsênico, que podiam ser confundidos com doenças naturais ou problemas de saúde existentes, dificultava a detecção imediata e levantava poucas suspeitas.
A prática de envenenar maridos começou a se espalhar entre as mulheres de Nagyrév. Inicialmente, pode ter sido uma resposta desesperada a situações extremas, mas com o tempo, e sob a influência de Fazekas e outras mulheres que já haviam agido, a prática se tornou mais difundida. As mulheres se reuniam em grupos informais, onde compartilhavam suas experiências e recebiam encorajamento para tomar medidas drásticas. A ausência de um médico residente na aldeia por um período significativo, e a prática de emitir atestados de óbito por um escrivão local que não realizava exames detalhados, contribuíram para que as mortes passassem despercebidas por um longo tempo.
A Descoberta e a Investigação
A série de mortes em Nagyrév continuou por anos, com um número incomumente alto de óbitos, especialmente entre homens e idosos. A comunidade, em sua maioria, parecia aceitar essas mortes como parte da vida rural, talvez devido à falta de conhecimento sobre as causas reais ou ao medo de questionar as autoridades locais. No entanto, as suspeitas começaram a surgir. Um parente de uma das vítimas, ou um estudante de medicina que visitava a região, é frequentemente creditado por ter notado a anomalia nos registros de óbito e a frequência das mortes.
A investigação formal teve início por volta de 1929. As autoridades, alertadas para a situação incomum, iniciaram um processo de exumação de corpos no cemitério local. Este foi um passo crucial e macabro, que revelou a extensão dos crimes. Dezenas de corpos foram desenterrados, e análises forenses, embora rudimentares para os padrões atuais, confirmaram a presença de arsênico em muitos deles. A evidência física era inegável e apontava para um padrão de envenenamento sistemático.
A notícia das exumações e das descobertas se espalhou rapidamente, causando um choque profundo na Hungria e além. A investigação se intensificou, e as autoridades começaram a interrogar as mulheres da aldeia. A pressão e as evidências levaram a confissões. As mulheres, muitas delas idosas, revelaram os detalhes de como o arsênico era obtido e administrado, e o papel central de Júlia Fazekas.
O Processo Judicial e as Consequências
O escândalo de Nagyrév resultou na prisão de dezenas de mulheres. Os julgamentos que se seguiram atraíram grande atenção da mídia e do público. As acusações variavam de assassinato a cumplicidade. Durante os procedimentos legais, as mulheres apresentaram suas razões, muitas vezes descrevendo vidas de miséria, abuso e falta de esperança. No entanto, o sistema judicial da época não reconhecia essas circunstâncias como justificativa para os crimes cometidos.
Os tribunais húngaros condenaram várias mulheres por seus papéis nos envenenamentos. Júlia Fazekas, a parteira, foi uma das principais acusadas. Embora os números exatos variem ligeiramente entre os registros históricos, estima-se que entre 26 e 45 mulheres foram presas, e um número significativo delas foi condenado. Algumas foram sentenciadas à morte e executadas, enquanto outras receberam penas de prisão. O impacto desses julgamentos foi devastador para a comunidade de Nagyrév, que ficou estigmatizada por anos.
O caso de Nagyrév não se limitou apenas aos maridos. Em alguns relatos, foi documentado que o arsênico também foi usado para eliminar outros membros da família que eram considerados um fardo, como idosos doentes ou crianças indesejadas. Essa extensão dos crimes adicionou uma camada ainda mais sombria à narrativa, revelando a profundidade do desespero e da falta de opções que algumas mulheres sentiam.
O Legado de Nagyrév
O caso das “Fabricantes de Anjos de Nagyrév”, como ficou conhecido, deixou um legado complexo. Ele expôs as duras realidades da vida rural na Hungria do início do século XX, as limitações sociais e legais enfrentadas pelas mulheres, e a capacidade de um grupo de indivíduos de cometer atos extremos sob certas condições. A história de Nagyrév serve como um lembrete das consequências trágicas que podem surgir da combinação de isolamento social, falta de recursos, desespero pessoal e a influência de figuras carismáticas.
A história de Nagyrév foi documentada em diversos livros, artigos e até mesmo em produções cinematográficas, garantindo que os eventos não fossem esquecidos. O caso continua a ser estudado por historiadores e criminologistas como um exemplo notável de crime em massa, oferecendo insights sobre a psicologia social e as dinâmicas de poder dentro de comunidades isoladas. A memória dos eventos permanece como um capítulo sombrio na história da Hungria, um testemunho da complexidade da natureza humana e das pressões sociais que podem levar a atos inimagináveis.
A aldeia de Nagyrév, embora tenha tentado se reerguer e superar o estigma, carrega consigo a história desses eventos. O caso é um lembrete de que a história, em suas manifestações mais perturbadoras, pode oferecer lições valiosas sobre a importância da justiça, da igualdade e do apoio social em todas as comunidades.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5ypzp24mk3o?at_medium=RSS&at_campaign=rss
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