A aldeia de As Neves, situada na província de Pontevedra, na região autónoma da Galícia, Espanha, é o palco de uma das mais singulares e antigas manifestações de fé e agradecimento do mundo. Anualmente, no dia 29 de julho, a comunidade e visitantes reúnem-se para a procissão de Santa Marta de Ribarteme, um evento que se distingue pela presença de caixões transportando pessoas vivas. Esta tradição secular, com mais de 300 anos de história, é uma expressão pública de gratidão de indivíduos que, acreditando terem escapado da morte ou de doenças graves por intercessão da santa, cumprem uma promessa de devoção.
Origens e Tradição Secular
A origem exata da procissão de Santa Marta de Ribarteme remonta a séculos, com registos que atestam a sua existência há pelo menos três centenas de anos. A devoção a Santa Marta, venerada como padroeira dos impossíveis e protetora dos que enfrentam a morte, consolidou-se na região ao longo do tempo. A tradição oral e documentos históricos locais indicam que a prática de transportar caixões com pessoas vivas surgiu como uma forma extrema de agradecimento. Aqueles que se viam à beira da morte, ou cujos entes queridos estavam em estado crítico, faziam uma promessa à santa: se a vida fosse poupada, participariam na procissão dentro de um caixão, simbolizando o renascimento e a superação da adversidade. Esta prática tornou-se um pilar da identidade cultural e religiosa de As Neves, transmitida de geração em geração e mantendo-se viva até aos dias de hoje. A persistência desta romaria reflete a profunda fé e o respeito pelas tradições ancestrais que caracterizam a cultura galega.
A Romaria de Santa Marta de Ribarteme
A romaria de Santa Marta de Ribarteme não se limita ao dia da procissão; é precedida por dias de preparação e celebrações. A comunidade de As Neves dedica-se à organização do evento, que atrai não só os habitantes locais, mas também peregrinos e curiosos de diversas partes da Galícia, de Espanha e até do estrangeiro. As ruas da aldeia são decoradas, e a atmosfera festiva mistura-se com um profundo sentido de reverência.
No dia 29 de julho, a aldeia acorda cedo para os preparativos finais. Missas são celebradas na igreja paroquial, onde os devotos se reúnem para orar e expressar a sua fé. É neste contexto que os “quase mortos”, como são localmente designados os participantes nos caixões, se preparam para cumprir as suas promessas.
Os Caixões e os Devotos
O elemento mais distintivo da procissão é, sem dúvida, a presença dos caixões. Estes não são caixões funerários no sentido tradicional, mas sim símbolos de uma experiência de quase morte e de um renascimento. Existem duas formas principais de participação:
- Dentro do Caixão: Alguns devotos, que fizeram a promessa pessoalmente, deitam-se dentro de um caixão aberto, que é então transportado por familiares ou amigos. A pessoa dentro do caixão está viva e consciente, muitas vezes em silêncio, com os olhos fixos no céu ou fechados em oração. Esta é a forma mais intensa de cumprimento da promessa, simbolizando a passagem da morte para a vida.
- Acompanhando o Caixão Vazio: Outros devotos, que fizeram a promessa em nome de um familiar que escapou da morte (ou que não pode participar fisicamente), transportam um caixão vazio. Este caixão representa a pessoa que foi salva e é levado em sinal de gratidão.
Os caixões são geralmente de madeira simples, sem adornos, e são carregados aos ombros por quatro ou seis pessoas. A seriedade e a devoção dos carregadores e dos que estão dentro dos caixões são palpáveis, transmitindo a profundidade da sua fé e do seu agradecimento.
O Percurso da Procissão
A procissão tem início na igreja paroquial de Santa Marta de Ribarteme e segue um percurso que atravessa as ruas da aldeia, culminando no cemitério local e regressando à igreja. O trajeto é acompanhado por uma multidão de fiéis, curiosos e turistas.
O ambiente durante a procissão é uma mistura de solenidade e emoção. Os cânticos religiosos e as orações preenchem o ar, intercalados com o som dos sinos e, por vezes, de uma banda de música tradicional galega. Os carregadores dos caixões avançam lentamente, com passos firmes, enquanto os devotos que os acompanham seguem em silêncio ou em murmúrio de preces. Muitos dos participantes, incluindo os que estão nos caixões, vestem hábitos religiosos ou roupas simples, em sinal de humildade e penitência.
Ao longo do percurso, é comum ver pessoas a fazer ofertas à santa, como velas, flores ou pequenas quantias de dinheiro, depositadas junto à imagem de Santa Marta que é também levada em procissão. A imagem da santa, ricamente adornada, é um ponto focal da devoção, e os fiéis procuram tocá-la ou beijá-la como um gesto de fé e esperança.
Significado Religioso e Cultural
A procissão de Santa Marta de Ribarteme é mais do que um mero evento religioso; é um pilar da identidade cultural de As Neves e da Galícia. A devoção a Santa Marta está profundamente enraizada na crença popular de que ela possui o poder de interceder junto a Deus para salvar vidas em situações desesperadoras. A santa é frequentemente associada à superação da morte e à ressurreição, embora não no sentido teológico estrito, mas sim na crença de que ela pode “trazer de volta” aqueles que estão à beira do fim.
Para os participantes, a procissão é um ato de cumprimento de uma promessa, um “ex-voto” vivo. É uma forma de honrar um compromisso feito em momentos de desespero e de agradecer publicamente pela graça concedida. A experiência de estar dentro de um caixão, mesmo que por um curto período, é vista como uma representação simbólica da morte que foi evitada e da nova vida que foi recebida. É um testemunho de fé e de resiliência.
A romaria também reforça os laços comunitários. A preparação e a participação no evento unem os habitantes de As Neves, que partilham uma herança cultural e religiosa comum. É um momento de reencontro, de partilha de histórias e de renovação da fé coletiva.
Preservação de uma Tradição Única
Ao longo dos séculos, a procissão de Santa Marta de Ribarteme tem enfrentado desafios, desde mudanças sociais a questionamentos sobre a sua natureza. No entanto, a força da fé e a determinação da comunidade de As Neves garantiram a sua continuidade. A tradição é vista não como uma prática macabra, mas como uma expressão profunda de gratidão e esperança.
Nos tempos modernos, a procissão tem atraído a atenção de meios de comunicação e investigadores de todo o mundo, curiosos pela sua singularidade. Embora possa parecer incomum para observadores externos, para os galegos e, em particular, para os habitantes de As Neves, é uma manifestação autêntica e profundamente significativa da sua fé e cultura. A sua singularidade contribui para o património imaterial da Galícia, sendo um exemplo vivo de como as tradições podem perdurar e evoluir mantendo a sua essência.
A organização do evento é meticulosa, envolvendo a paróquia, a câmara municipal e associações locais. Garante-se que a procissão decorra de forma ordeira e respeitosa, preservando o seu caráter sagrado e a sua importância para os devotos. A segurança dos participantes, especialmente dos que estão nos caixões, é uma prioridade, e todas as medidas são tomadas para assegurar o bem-estar de todos.
A procissão de Santa Marta de Ribarteme em As Neves, Galícia, permanece como um testemunho duradouro de devoção e gratidão. Anualmente, a 29 de julho, esta romaria reúne fiéis que, através do transporte de caixões com pessoas vivas ou vazios, cumprem promessas feitas em momentos de grande aflição. A tradição, com mais de 300 anos, reflete a profunda fé na intercessão de Santa Marta e a resiliência cultural de uma comunidade que preserva os seus ritos e crenças ancestrais. É um evento que, pela sua singularidade e intensidade emocional, continua a ser um ponto de referência na paisagem religiosa e cultural da Galícia.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg50482jnm8o?at_medium=RSS&at_campaign=rss
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