A administração dos Estados Unidos, durante o período de 2017 a 2021, implementou uma série de medidas rigorosas em sua política de imigração. Essas ações tiveram um impacto significativo em diversas categorias de imigrantes e visitantes, incluindo os estudantes internacionais. Uma das manifestações mais notáveis dessa abordagem foi o cancelamento de vistos de milhares de estudantes e pesquisadores, uma decisão que gerou amplas discussões e repercussões no cenário educacional e diplomático.
O governo norte-americano justificou essas ações com base em preocupações de segurança nacional e na proteção da propriedade intelectual. A retórica oficial frequentemente associava a presença de certos indivíduos a riscos de espionagem ou apropriação indevida de tecnologia e pesquisa sensível. Essa postura culminou em políticas específicas que visavam restringir o acesso de determinados grupos de estudantes e pesquisadores ao país.
A Proclamação Presidencial de 2020
Em 29 de maio de 2020, foi emitida a Proclamação Presidencial 10043, intitulada “Suspensão da Entrada como Não-Imigrantes de Certos Estudantes e Pesquisadores da República Popular da China”. Esta proclamação foi o instrumento legal que fundamentou o cancelamento de vistos de aproximadamente 6.000 estudantes e pesquisadores. A medida entrou em vigor em 1º de junho de 2020.
O texto da proclamação estabelecia que a entrada nos Estados Unidos seria suspensa para qualquer cidadão chinês que buscasse entrar no país com visto F (estudante) ou J (intercâmbio) e que estivesse associado a uma entidade que apoiasse ou implementasse a estratégia de “fusão civil-militar” da China. Essa estratégia, segundo o governo dos EUA, visava adquirir tecnologias avançadas para fins militares, mesmo que desenvolvidas em instituições civis.
Critérios e Alvos da Medida
Os critérios para a revogação dos vistos eram específicos. A proclamação visava principalmente estudantes de pós-graduação e pesquisadores que tivessem ligações com universidades chinesas consideradas afiliadas ao Exército de Libertação Popular (ELP) ou a outras entidades que contribuíssem para o desenvolvimento militar da China. Não se tratava de uma proibição generalizada para todos os estudantes chineses, mas sim de uma segmentação baseada em supostas afiliações e áreas de estudo.
O Departamento de Estado dos EUA foi o principal órgão responsável pela implementação da proclamação. Ele identificou os indivíduos cujos vistos deveriam ser revogados ou cujos pedidos de visto deveriam ser negados. A estimativa de 6.000 vistos cancelados foi divulgada por autoridades do Departamento de Estado em setembro de 2020, quatro meses após a emissão da proclamação.
Os estudantes e pesquisadores afetados estavam frequentemente matriculados em programas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM), áreas consideradas sensíveis devido ao seu potencial de aplicação militar ou de dupla utilização. A medida afetou tanto aqueles que já estavam nos EUA quanto aqueles que tentavam entrar no país para iniciar ou retomar seus estudos.
Fundamentação da Segurança Nacional
A justificativa oficial para a Proclamação 10043 centrava-se na proteção da segurança nacional dos Estados Unidos. O governo argumentava que a estratégia de fusão civil-militar da China representava uma ameaça, pois permitia que o ELP explorasse o conhecimento e a pesquisa desenvolvidos em universidades e empresas civis para modernizar suas forças armadas. A presença de estudantes e pesquisadores ligados a essas entidades nos EUA era vista como um vetor para a transferência de tecnologia e propriedade intelectual.
Autoridades americanas citaram casos de suposta espionagem econômica e roubo de segredos comerciais como evidências da necessidade de tais restrições. A medida foi apresentada como uma ação preventiva para salvaguardar a inovação e a vantagem tecnológica dos EUA, especialmente em setores críticos como inteligência artificial, computação quântica e biotecnologia.
Processo de Revogação de Vistos
O processo de revogação de vistos envolveu a identificação de indivíduos por meio de bancos de dados e informações de inteligência. Uma vez identificados, os vistos F-1 (estudante acadêmico) e J-1 (visitante de intercâmbio) desses indivíduos eram marcados para cancelamento. Em muitos casos, os estudantes só tomavam conhecimento da revogação ao tentar reentrar nos EUA após uma viagem ao exterior, ou ao serem notificados por suas instituições ou pelo próprio governo.
Para aqueles que já estavam nos Estados Unidos, a revogação do visto significava que sua autorização para permanecer no país era comprometida. Embora a proclamação não exigisse a deportação imediata de todos os afetados, ela criava uma situação de incerteza legal e, em muitos casos, levava à necessidade de deixar o país. O Departamento de Segurança Interna (DHS) e o Serviço de Imigração e Alfândega (ICE) eram os responsáveis pela aplicação das regras no território americano.
Impacto Imediato nos Estudantes
O impacto imediato nos estudantes e pesquisadores afetados foi significativo. Muitos viram seus planos acadêmicos e de carreira interrompidos abruptamente. Alguns foram impedidos de embarcar em voos para os EUA, enquanto outros, já no país, tiveram que abandonar seus estudos e pesquisas e retornar aos seus países de origem. A incerteza e a falta de clareza sobre os critérios exatos de elegibilidade geraram ansiedade e confusão entre a comunidade de estudantes internacionais.
Houve relatos de estudantes que, apesar de não terem ligações diretas com o ELP, foram afetados devido a afiliações indiretas ou interpretações amplas das diretrizes. A medida também criou um clima de desconfiança e escrutínio para outros estudantes chineses, mesmo aqueles não diretamente visados pela proclamação.
Repercussões para as Instituições de Ensino Superior dos EUA
As universidades americanas, que dependem significativamente da matrícula de estudantes internacionais para diversidade acadêmica, pesquisa e receita, sentiram as repercussões da Proclamação 10043. A China tem sido historicamente a maior fonte de estudantes internacionais para os EUA, e as restrições impactaram diretamente o fluxo de talentos e recursos.
Instituições de ensino superior expressaram preocupação com a perda de estudantes talentosos, a interrupção de projetos de pesquisa e o impacto financeiro. A presença de estudantes internacionais contribui com bilhões de dólares para a economia dos EUA anualmente, por meio de mensalidades, taxas e despesas de vida. A redução no número de matrículas internacionais, exacerbada por políticas como essa, representou um desafio para os orçamentos universitários.
Além disso, a medida levantou questões sobre a reputação dos EUA como um destino acolhedor para a educação internacional e a pesquisa colaborativa. Universidades e associações educacionais defenderam a importância de manter um ambiente aberto para estudantes e pesquisadores de todas as nacionalidades, argumentando que a colaboração internacional é fundamental para o avanço científico e tecnológico.
Contexto Mais Amplo da Política de Imigração
O cancelamento de vistos de estudantes chineses não foi um evento isolado, mas parte de uma estratégia mais ampla do governo Trump para reformar a imigração. Essa estratégia incluiu a construção de um muro na fronteira sul, a implementação de proibições de viagem para cidadãos de certos países, a revisão de programas de visto de trabalho como o H-1B e o aumento do escrutínio sobre todos os tipos de vistos.
No que diz respeito aos estudantes internacionais, outras ações incluíram propostas para limitar a duração dos vistos F-1, em vez de permitir que os estudantes permanecessem pelo “período de status”, e um aumento na fiscalização do Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio (SEVP). Essas medidas, combinadas, criaram um ambiente de maior incerteza e dificuldade para estudantes estrangeiros que buscavam estudar nos Estados Unidos.
A administração argumentava que essas políticas eram necessárias para garantir a segurança nacional, proteger os empregos americanos e manter a integridade do sistema de imigração. Críticos, por outro lado, apontavam para o impacto negativo na economia, na pesquisa e na reputação internacional dos EUA.
Reações e Posicionamentos
A Proclamação 10043 e o subsequente cancelamento de vistos provocaram diversas reações. O governo chinês condenou a medida, classificando-a como discriminação e uma violação dos direitos dos estudantes. Diplomatas chineses emitiram declarações oficiais exigindo que os EUA revertessem a decisão e parassem de politizar a educação.
Nos Estados Unidos, associações de universidades, como o American Council on Education (ACE) e a NAFSA: Association of International Educators, expressaram preocupação. Eles enfatizaram a contribuição vital dos estudantes internacionais para a economia e a pesquisa dos EUA e alertaram para as consequências de políticas que pudessem desencorajar sua vinda. Organizações de direitos civis e grupos de defesa dos imigrantes também criticaram a medida, argumentando que ela era excessivamente ampla e discriminatória.
Apesar das críticas, o governo manteve sua posição, reiterando que as ações eram justificadas por imperativos de segurança nacional e que visavam apenas indivíduos com ligações diretas ou indiretas a entidades militares chinesas.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5ykqk829kno?at_medium=RSS&at_campaign=rss
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