O abandono de marinheiros em navios representa uma questão persistente e complexa na indústria marítima global. Em 2024, aproximadamente 3,1 mil marinheiros foram abandonados em embarcações, um dado que sublinha a gravidade e a continuidade deste problema. Este cenário envolve tripulantes deixados sem salários, alimentos, água, combustível ou acesso a cuidados médicos, muitas vezes a milhares de quilómetros de casa e em águas estrangeiras.
O abandono ocorre quando um armador falha em cumprir as suas obrigações fundamentais para com a tripulação. Isso pode incluir a não provisão de fundos para o regresso dos marinheiros aos seus países de origem (repatriação), a interrupção do pagamento de salários por vários meses, ou a recusa em fornecer provisões essenciais para a sobrevivência a bordo. A situação é agravada pela falta de comunicação e pela ausência de um plano claro para a resolução por parte dos proprietários do navio.
Definição e Contexto do Abandono
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Marítima Internacional (OMI) definem o abandono de marinheiros como uma situação em que o armador não cumpre as suas obrigações contratuais e legais para com a tripulação. Isso inclui a falha em pagar salários por um período mínimo de dois meses, a não provisão de alimentos e outras necessidades básicas, ou a falha em organizar e pagar a repatriação dos marinheiros. Estes incidentes podem ocorrer em qualquer parte do mundo, em portos, ancoradouros ou mesmo em alto mar, deixando os marinheiros em um limbo legal e humanitário.
A natureza transnacional da indústria marítima, com navios registados em diferentes bandeiras, operados por empresas de diversas nacionalidades e tripulados por marinheiros de múltiplos países, contribui para a complexidade na resolução destes casos. A jurisdição e a responsabilidade podem tornar-se obscuras, dificultando a intervenção rápida e eficaz das autoridades.
Causas Subjacentes do Problema
Diversos fatores contribuem para o abandono de marinheiros. A principal causa é frequentemente a dificuldade financeira ou a falência do armador. Quando uma empresa de navegação enfrenta problemas económicos, os salários da tripulação e os custos operacionais, como combustível e provisões, são muitas vezes os primeiros a serem cortados. A falta de fundos pode levar à incapacidade de pagar as taxas portuárias, resultando na detenção do navio e, consequentemente, no abandono da tripulação.
Outras causas incluem a falta de fiscalização eficaz por parte dos estados de bandeira, que são responsáveis por garantir que os navios registados sob a sua bandeira cumpram as normas internacionais. A existência de “bandeiras de conveniência”, onde os navios são registados em países com regulamentação menos rigorosa, pode exacerbar o problema. A falta de transparência na propriedade dos navios também dificulta a identificação e responsabilização dos verdadeiros proprietários.
O Impacto nos Marinheiros
O abandono tem um impacto devastador na vida dos marinheiros e das suas famílias. A privação de salários significa que as famílias em casa, muitas vezes dependentes exclusivamente do rendimento do marinheiro, enfrentam dificuldades financeiras extremas. Hipotecas, contas e despesas básicas tornam-se impossíveis de pagar, levando a um ciclo de dívida e pobreza.
A bordo, os marinheiros abandonados enfrentam condições precárias. A escassez de alimentos e água potável é comum, assim como a falta de acesso a cuidados médicos adequados. A ausência de combustível pode significar a perda de energia para aquecimento, refrigeração e iluminação. O isolamento, a incerteza e a inação prolongada contribuem para um significativo impacto psicológico, incluindo stress, ansiedade, depressão e, em casos extremos, pensamentos suicidas. A dignidade e o bem-estar dos indivíduos são severamente comprometidos.
A Resposta Internacional e a MLC 2006
A comunidade internacional tem procurado abordar o problema do abandono através de instrumentos legais e organizações. A Convenção do Trabalho Marítimo de 2006 (MLC 2006), desenvolvida pela OIT, é um pilar fundamental neste esforço. Conhecida como a “Carta de Direitos dos Marinheiros”, a MLC 2006 estabelece padrões mínimos para as condições de trabalho e vida a bordo, cobrindo áreas como salários, horas de trabalho, alojamento, instalações de lazer, alimentação, cuidados de saúde e repatriação.
Um dos aspetos mais cruciais da MLC 2006 é a exigência de que os armadores mantenham uma garantia financeira para cobrir o abandono. Esta garantia, que pode ser um seguro ou outra forma de segurança financeira, deve assegurar que os marinheiros recebam até quatro meses de salários não pagos e que os custos de repatriação sejam cobertos. A convenção também estipula que os marinheiros devem ter acesso a um mecanismo de queixas a bordo e em terra.
Mecanismos de Proteção da MLC 2006
A MLC 2006 exige que os navios transportem um certificado de garantia financeira que cubra o abandono. Este certificado deve ser emitido por um provedor de seguros ou uma instituição financeira e deve ser visível para a tripulação e para as autoridades portuárias. Em caso de abandono, este mecanismo visa facilitar o pagamento dos salários devidos e a organização do regresso dos marinheiros a casa, sem que estes fiquem dependentes da boa vontade do armador.
A convenção também reforça o papel dos estados de bandeira e dos estados do porto na fiscalização e aplicação das suas disposições. Os estados do porto têm o direito de inspecionar navios estrangeiros que escalam os seus portos para verificar a conformidade com a MLC 2006. Se forem encontradas deficiências graves, o navio pode ser detido até que as correções sejam feitas.
Desafios na Resolução de Casos de Abandono
Apesar da existência da MLC 2006 e de outros instrumentos, a resolução de casos de abandono continua a ser um desafio. A complexidade jurídica, envolvendo diferentes jurisdições e leis marítimas internacionais, pode atrasar significativamente o processo. Armadores inescrupulosos podem tentar evadir as suas responsabilidades, dificultando a localização e a recuperação de fundos.
A falta de recursos financeiros para cobrir os custos de repatriação e salários, mesmo com a garantia financeira exigida pela MLC 2006, pode ser um obstáculo. Em alguns casos, o valor da garantia pode não ser suficiente para cobrir todas as despesas, ou o processo para acionar a garantia pode ser burocrático e demorado. A localização remota de alguns navios abandonados também complica a entrega de ajuda humanitária e a organização da repatriação.
O Papel dos Estados e Organizações
Os estados de bandeira têm a responsabilidade primária de garantir que os navios registados sob a sua bandeira cumpram as normas internacionais, incluindo as da MLC 2006. Isso envolve a realização de inspeções regulares e a aplicação de sanções em caso de incumprimento. Os estados do porto, por sua vez, desempenham um papel crucial na identificação de navios não conformes e na intervenção quando um abandono é detetado nas suas águas.
Organizações não governamentais (ONGs), sindicatos de marinheiros como a Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF), e instituições de caridade marítimas desempenham um papel vital no apoio aos marinheiros abandonados. Estas organizações fornecem assistência humanitária, apoio jurídico, aconselhamento e, em muitos casos, coordenam os esforços para garantir a repatriação e a recuperação de salários. A ITF, em particular, tem uma rede global de inspetores que trabalham para identificar e intervir em casos de abandono.
Persistência do Problema e Caminhos Futuros
Apesar dos esforços legislativos e da atuação de diversas organizações, o abandono de marinheiros continua a ser uma realidade preocupante na indústria marítima. O número de casos registados anualmente demonstra que as lacunas na fiscalização, a impunidade de alguns armadores e a complexidade do sistema global de navegação persistem.
Para mitigar este problema, é essencial fortalecer a cooperação internacional entre estados de bandeira, estados do porto e estados de nacionalidade dos marinheiros. Aumentar a transparência na propriedade dos navios e reforçar os mecanismos de fiscalização e aplicação da MLC 2006 são passos cruciais. A digitalização de informações sobre navios e armadores pode também contribuir para uma maior responsabilização e para a deteção precoce de riscos de abandono.
A sensibilização para a questão do abandono de marinheiros é igualmente importante. A visibilidade do problema pode pressionar os governos e a indústria a adotar medidas mais eficazes e a garantir que os direitos e o bem-estar dos marinheiros sejam protegidos. O objetivo final é assegurar que nenhum marinheiro seja deixado para trás, sem recursos e sem esperança de regresso a casa.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce87274n223o?at_medium=RSS&at_campaign=rss
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